Cultura

NO MEU TEMPO DE CRIANÇA EM SERRINHA: Médicos, o sapateiro e barbeiros

Lembranças dos anos 1940/1950 quando em nossa aldeia global, em nosso cosmo, todos se conheciam
Tasso Franco , da redação em Salvador | 04/05/2017 às 14:40
Aos 5 anos no corrimão de casa com meu 'look' pimpão
Foto: Arquivo pessoal
    Como falei dos meus dentistas no meu tempo de menino - Augusto Palma e Arnaldo Cohim - agora vou falar dos médicos e outros profissioanais nos anos 1940/1950, em Serrinha. 

   Curioso para as crianças é que, em nossa aldeia, que é global, porque cada personagem desses existe em quaisquer comunidades da Terra - o dentista, o médico, o sapateiro, a professora, o gari, o alfaiate, etc - essas pessoas são imortais. São elas que ficam gravadas na memória da gente até a hora da partida para outra esfera espiritual, se assim existirem como profetizam.

   Na vida, para aqueles que tem vida longa, ninguém esquece o primeiro cabeleireiro embora possa ter dezenas deles ao longo dos anos. Do primeiro dentista, da primeira professora e assim por diante.

   Serrinha era uma aldeia global como muitas outras. As pessoas nasciam, cresciam e morriam nesse cosmo sem nunca sair dele. Com meu bisavô aconteceu assim, com meu avô também e com meu pai da mesma forma. 

   Todo cosmo se conhecia e sabia o que cada personagem fazia. 'Papagaio' cortava cabelo e tocava banjo; dona Maria de Tihome fazia mingau e vendia na porta do mercado; Sêo Titi Magalhães era o alfaiate e vendia ternos; Sêo João da Ema vendia tecidos; Sêo Sinfroninho, comercializava ferragens. Ninguém mudava de ramo. Era aassim a vida toda.

   Nós, crianças, tínhamos nosso código hierárquico na Serra. A gente achava que as pessoas mais importantes eram pela ordem: o prefeito, o delegado de Policia, o padre, o juiz de direito, o sargento do Tiro de Guerra, a (o) professora (r), e depois vinham em escalas menores, o dono da loja de tecidos, o dono da venda, o tocador de vioão, o maestro da 30 de Junho, o sapateiro e as figuras populares chamadas de "doidinhos" que viviam pelas ruas. 

   O mais temido deles era Anísio da Silva Costa, o "Gaúcho", irmão de um amigo de meu pai, Abdon da Silva Costa, o qual era grandão, inofensivo até a alma, vestia-se de roupa cáqui e ficava nas proximidades da igreja Matriz simulando contar dinheiro com notas de papel. A gente tinha medo dele pelo corpanzil e porque ensaboava a cabeça.

   Na escola, a pro Edna Santos ensinava a gente sobre as autoridades. Perguntava: - Vocês sabem o nome do prefeito de nossa cidade, daquele que governa o município? 

   Silêncio total. 

   Ela então falava: - O nome do nosso prefeito é José Vilalva. Doutor Vilalva. Repitam. E a gente repetia em unissono: - Doutor Vilalva. 

   - O nome do delegado é? Novo silêncio. 

   - Sêo Euvaldo Campos. E a gente falava: - Euvaldo Campos. E o juiz de Direito, alguém sabe o nome? Nada. - É o doutor Artur Machado. 

   Então, os dois médicos do meu tempo de menino foram, Germano Araújo e  Miguel Nogueira. Duas personalidades diferentes. Germano era mulato, bonitão, diz-se que algumas mulheres tremiam de desejo quando ele passava, filho adotivo do coronel Nenénzinho; Miguel era um Nogueira, ariano, da aristocracia serrinhense, estatura mediana, uma espécie de visionário da medicina sem mistérios. 

   Adorava vertir-se de terno branco e quando ia para casa, no alto da Bela Vista, um prolongamento da rua Direita em direção a Barrocas, só subia a ladeira de costas. Diz-se que era para evitar problemas cardíacos.

   Menino (a) não ia a médico. Salvo aqueles que tinham alguma doença mais grave. As crianças saudáveis, no máximo tomavam remédios passados pelos farmacêuticos ou os caseiros, os chás familiares para dores de barriga. 

   Creio que só fui ao médico quando entrei no Ginásio e precisei de um atestado. Dr Germano atuava no Posto Médico. E doutor Miguel em consultório na Rua Direita. Quando forneciam um atestado diziam: - Você não tem nada menino. Tá tudo bem.

   Os médicos eram personalidades diferenciadas porque raros. O primeiro médico da Serra foi dr André Negreiros Falcão, década de 1920, e quando eu era menino ele já morava em Salvador mais do que Serrinha. Tornara-se politico, lider do PSD. Diz-se que muitos serrinhas entraram na Faculdade Bahiana de Medicina, onde ele dava as cartas, com um empurrãozinho de doutor André.

   Criança tem poucos conhecidos adultos, salvo aqueles que eram amigos dos nossos pais. 

   Na nossa aldeia, no corredor do Comércio da Livraria e Tipografia de meu pai tinha Sêo Veloso, do Bar e Sorveteria Itaúna, onde a gente comprava picolés; mais à frente Sêo Cosme, da Farmácia do Povo; e Sêo Wilson, vendedor de pneus. Do outro da loja de meu pai, tinha Sêo Zé e Sêo Almiro Bacelar, irmãos, da autopeças, em seguida Sêo Paulino Santana, o Biêta, da Farmácia e das fotos. E na praça Luis Nogueira, em frente, Sêo Demá, do querozene; Sêo Miguelzinho, dos Tecidos; Sêo João da Ema e Sêo Zé Faustino, dos Tecidos; Sêo Juca, dos eletrodomésticos; e Seo Zéfredo, do Armarinho. E na rua do Mercado, Sêo Manoel Carneiro, da Venda.

   Eu também conhecia os amigos e amigas de meus país: Abdon, Lourinho, Elisio Freitas, Vianinha (maestro da 30 de Junho), Alfredinho do Sax, Nozinho e meus avôs, avós, tios e tias. E só.

   Agora, tinha pessoas especiais. Um deles era Sêo Pirulito, o sapateiro. Creio que era o camarada de melhor bom humor da aldeia. Só vivia assoviando e cantarolando. Quando estava perto de entrar no ginásio e fui fazer meu primeiro sapato social preto vernizado em sua tenda cheguei e falei para ele: - Sou filho de Sêo Bráulio da Livraria e vim fazer um sapato para o ginásio. 

   Ele me cubou de cima para baixo e de baixo para cima, assoviando, cantarolando (tenho a impressão que era a música Tico Tico no Fubá, de Zequinha de Abreu) e respondeu. 

   - Você é filho de Brálio (muita gente que falava o nome de meu pai engolia o u e fica Brálio) venha cá. Coloque o pé direito aqui nesse papel. E aí riscava o pé com um lápis, media a altura do pé, a parte côncova de baixo; e depois dizia: - Agora coloca o outro pé. E fazia a mesma operação. 

   -  Pode ir embora. Dentro de 8 dias está pronto e você venha experimentar e pegar. Vou falar com seu pai.

   Os negócios eram feitos assim, na base da boca, da confiança. Sêo Pirulito então falava com meu pai o valor do par de sapatos e ele pagava. Passado uma semana voltei a sapataria e encontro-o cantarolando, assoviando. Era um curió dos melhores. Assoviava dobrados. 

   - Vim pegar meu sapato. - Venha cá. Aí me colocava naquela banco de experimentar sapatos. 

   - Trouxe uma meia? Não trouxe. Use essa aqui. Enfie o pé. Depois, com dedos de sapateiro apertava o bico do sapato e dizia: Tá ótimo. Tá confortável? Eu respondia. Tá. Pronto. 

   Experimente o outro. Bom demais. E lá eu ia para casa com meu par de sapatos para estrear no ginásio. 

   Até então, salvo em momentos festivos, eu só usava sandálias de couro, as populares alpercatas. Ainda não existem as japonesas, hoje, chamadas de havianas.

   Outra figura que eu gostava muito era dona Maria de Tihome que vendia minguau na porta do Mercado. Morreu recentemente com quase 100 anos de idade. Eu comprava fiado, na conta de meu pai, e ia todo sábado, cedo, na sua tendinha. - Vim tomar meu mingau, dizia todo desconfiado.

   - É o menino de 'Bráilio' né?  - É sim senhora. - Quer de milho ou de tapioca?  - De tapioca, respondia.

   Dona Maria então levantava a tampa do panelão protegido com um pano para o mingau não esfriar, enchia um copo dos grandes e dava-me. 

   - Cuidado, tá quente, lembrava e colocava um pouco de canela em pó. Depois, comentava assim que eu dava os primeiros sopros na beira do copo e experimentava o mingau: - Quer um pedaço de bolo? - Eu quero sim senhora. 

   Depois que fartava-me no tapioca com bolo descia a rua do Mercado até a praça e ia zanzar pela feira livre da Luis Nogueira e do Largo da Federação.

   Lembro também do dia em que fui fazer minha primeira calça comprida na Alfaiaria de Sêo Titi Magalhães na entrada da Rua Barão de Cotegipe. Aí fui com meu pai. - Vou deixar esse rapaz aí pra fazer uma calça comprida que vai estudar no Ginásio, disse a Titi. 

   Sêo Titi era igual a meu pai. Econômico em palavras. - Sente ali que daqui a pouco vou tirar suas medidas. 

   Eu conhecia os dois filhos de Sêo Titi, o Antonio Carlos Magalhães (boi) e José Emanuel (depois professor de matemática do Ginásio) que jogavam bola comigo no largo da Usina.

   Sêo Titi então chamou-me para um reservado de sua tenda - ele tinha uma loja que vendia calças, ternos, cintos, etc - com a oficina no fundo e mandou eu ficar em pé com as pernas discretamente abertas, "como você anda" - disse - pegou uma fita métrica, um caderno, um marcador e mediu minhas pernas, por fora e por dentro. 

   Depois, a cintura e os quadris. - Pronto, disse ele, pode ir embora que já tomei suas medidas e anotava no caderno. - Como é seu nome? É o Tasso não é o Braulinho não, né! - É o Tasso, respondi.

   Uma semana depois fui pegar a calça. Uma maravilha. O charme é que tinha um tampa no bolso da traseira e acima do bolso afixado com linha a marca "Alfaiataria Magalhães". O Alfaiataria com pequeno destaque e o MAGALHÃES em caixa alta, letras maiúsculas. 

   A gente tinha orgulho de vestir uma calça com essa marca ir à rua ou ao ginásio com a camisa por dentro para ressaltar a marca. 

   Outra pessoa que também gostava muito era de Sêo Papagaio, o barbeiro tocador de banjo da Tenda de Oficial situada na rua do Mercado em frente a loja de Sêo Valdemar, pai de Dema. 

   Ele parecia com o personagem de Péricles, o "Amigo da Onça", com um bigodinho à moda inglesa, unhas sempre pintadas e cabelo com brilhantina. Era um figuraço. E, de quebra tocava banjo. Creio o único que conhecia no meu tempo de menino.

   A tenda era um burburinho. Como todo espaço dessa natureza era onde se sabiam as noticias da cidades, as fofocas, as traições, os calotes e assim por diante. Mas, nós crianças, não entendíamos nada disso. O importante era cortar o cabelo e passar o talco no cangote.

   E "Papagaio" - nunca soube seu nome verdadeiro - era um mestre. Assoviava, cantarolava com o tic-tac da tesoura batendo as asas do aparelho numa velocidade impressionante. 

   Eu também cortei meu cabelo, creio que foi meu primeiro barbeiro (ninguém falva cabeleireiro) com Sêo Vicente Campos, o qual possuia um misto de barbearia e vidracaria. Aparentemente uma coisa não combinava com a outra, mas, funcionava e foi assim que ele criou sua imensa familia, com Sidney e Vicentinho, dois dos seus filhos amigos de nossas 'molecagens' de crianças na Luis Nogueira.

   Sêo Vicente fazia parte do time de meu pai, Sêo Titi, Sêo Cosme, homens de poucas palavras, mas, práticos, agéis nos seus oficios. O modelo de corte do cabelos para crianças era único: estilo pimpão. Máquina zero dos dois lados da cabeça, um pouco no teto e pimpão em destaque na frente. O barbeiro também fazia o 'pé' ou cangote.

   Pra crônica não ficar muito grande, depois falarei de outros personagens adultos do meu tempo de menino, como disse, imortais. Tenho cada um deles gravado na memória enquanto ela não escape da minha cabeça.