Cultura

ADEMAR e a banda FURTA COR na contra-mão da Axé, MAURICIO MATOS

Jornalista Mauricio Matos escreve quinzenalmente sobre música
Mauricio Matos , da redação em Salvador | 16/02/2017 às 10:49
Ademar diz que não conhece músico rico, só cantores e donos de blocos
Foto: DIV
 
   Depois do sucesso da música 'Frenesi', no Carnaval de 1987, Ademar e a banda 'Furta Cor' entraram em estúdio para gravar o que viria a ser o disco de maior sucesso do grupo, 'Amor e Laser'. Reformulada, a banda passaria a contar também com um vocal feminino, da cantora Tânia Luz, “uma das artistas mais injustiçadas da música baiana. Ela canta muito e nunca teve o talento reconhecido”, diz Ademar.

   Ao lembrar de como surgiu o nome artístico da cantora, conta, às gargalhadas, que foi numa entrevista à jornalista Maria de Fátima Dannemann. “Fui questionado sobre o sobrenome dela. Perguntei a Tânia e ela me sussurrou Nunes. Eu entendi Luz e ficou Tânia Luz”.

   Os dois dividiram os vocais da música 'Amor e Laser', oito meses nas paradas de sucessos das rádios FM de Salvador. Mais uma vez, Ademar e a banda 'Furta Cor' seguiam o caminho contrário dos outros grupos de Axé. A canção, de autoria de Carlos Pita, nada tinha a ver com os ritmos da época. É uma balada romântica, que poderia ter sido gravada por qualquer 'menestrel' da MPB.

   O disco, que vendeu 120 mil cópias, continha ainda outro grande sucesso do grupo, 'Negra Dourada'. Seu talento artístico já chamava a atenção de produtores e músicos baianos. Para quem saca um pouco de música e em especial de rock, vai entender essa comparação: Ademar é do mesmo nível técnico do falecido tecladista Jon Lord (Deep Purple) e de Rick Wakeman (Yes), dois monstros sagrados dos teclados.

   Foi justamente esse talento musical que fez de Ademar um dos produtores e arranjadores mais requisitados da música baiana. Prova disso é que diversos sucessos do Axé Music foram gravados por ele. E foi nesse período que criou a 'Avatar', primeira banda baiana a utilizar pintura como conceito estético-musical, muito antes da 'Timbalada', de Carlinhos Brown.

   A 'Avatar' era formada pelo mesmo pessoal da 'Furta Cor' e seus integrantes tinham os rostos pintados ao estilo da banda de rock norte-americana 'Kiss'. “Recebi uma proposta do produtor Cristóvão Rodrigues para montar um grupo e tocar lambada. Eu era artista da RCA e não podia ter nenhum contrato com outra gravadora. Daí, surgiu a ideia de esconder nossas identidades através da pintura”, lembra Ademar.

   A banda, que só durou dois anos, é responsável pela versão em português da música 'Cuisse La', renomeada como 'Isso é Bom', embora ficasse conhecida como 'Melô do Uipitipiti'. Sucesso no Carnaval de 1989, quando a lambada era moda em boa parte do mundo, a canção renderia ao 'Avatar' uma turnê por países da Europa e em Israel, além de um 'Disco de Ouro' por conta da' participação na coletânea 'Lambada', que chegou a ter lançamento mundial.
Com a 'Furta Cor', Ademar ficou sem gravar de 1988 a 1991 provocado por um desentendimento com a gravadora RCA. 

   No retorno aos estúdios, já pelo selo Polydisc, da gravadora Sony, durante a gravação do disco 'Ônibus', sofreu um grave acidente automobilístico na BR-324, na altura de Candeias (Ba), cidade da Região Metropolitana de Salvador. Teve diversas escoriações pelo corpo e precisou operar o joelho, o que acabou lhe deixando nove meses de 'molho'.   

   “O acidente me prejudicou muito. Saí do hospital direto para o estúdio a fim de gravar os vocais do disco e, quando voltei aos palcos, já tinha perdido espaço na música baiana”, recorda. Todos os contemporâneos dele, inclusive Luiz Caldas, considerado o 'pai da Axé Music', também ficaram para trás e tinham sido substituídos por uma nova geração de artistas, como Daniela Mercury, 'Banda Beijo', 'Cheiro de Amor', 'Araketu', Ricardo Chaves, 'Asa de Águia' e 'Chiclete com Banana'. O 'Chiclete' 'estourou' nacionalmente em 1987 e conseguiu atravessar décadas de popularidade até se transformar nesse arremedo que é hoje. Mas aí, já é outro papo...

   O tempo que Ademar ficou parado devido ao acidente o afastou dos palcos e dos trios, mas não da música. Nesse período, abriu o 'Periferia Estúdio', no bairro de Águas Claras, onde inúmeros sucessos da música baiana foram gravados. “Como músico, arranjador ou produtor, gravei mais de 750 discos”, garante o tecladista. Para quem não sabe, ele foi músico e arranjador no disco 'Reflexu's da Mãe África', da banda Reflexus, que vendeu mais de 1 milhão de cópias. O grupo foi o primeiro do estilo Axé Music a alcançar essa marca e também a se apresentar no 'Canecão', no Rio de Janeiro.

   Em qualquer lugar do mundo, Ademar estaria multimilionário, entretanto essa não era e nem nunca foi a lógica comercial da Axé Music. Na verdade, apenas os empresários, donos de blocos, de trios e de bandas enriqueceram. Ou você conhece algum músico deste segmento que tenha ficado rico, seja baixista, guitarrista, tecladista, baterista ou percussionista?

   Além disso, àquela altura do campeonato a indústria fonográfica já tinha abraçado os novos artistas da Axé Music e os transformados em celebridades. A Daniela Mercury foi dada a alcunha de 'Rainha do Axé', título usurpado sem a menor cerimônia de Sarajane. Foi nesse momento que, segundo Ademar, “a coisa também começou a degringolar musicalmente”. Na sua avaliação, músicos, empresários e produtores não tiveram a capacidade de entender que a música baiana era boa, porque era simples. “Eles tentaram fazer o difícil, não conseguiram e não tiveram a humildade de voltar a fazer o fácil”.
 
    E foi com uma música de fácil assimilação que, em meados dos anos 90 e já como produtor musical, Ademar mais uma vez viria a quebrar paradigmas na música baiana, com a produção do primeiro disco do grupo 'Gera Samba', cujo sucesso 'A Dança do Tchu, Tchu' colocaria o pagode baiano na elite da Axé Music. Assim como centenas de artistas, a turma de Beto Jamaica e Cumpadre Washington também gravou no estúdio de Ademar, que encerrou as atividades em 2003 por causa da pirataria que afetou sensivelmente a indústria fonográfica mundial. Incansável, ainda iria abrir um outro estúdio, o 'Caverna', que funcionou de 2005 a 2010, no Garcia.

   Para o tecladista, o futuro da música baiana está nos cantores Saulo e Levi (Jamil) e na banda 'Baiana System'. “Saulo está mantendo o conceito do Axé no seu trabalho, com algumas nuances de novidade, Levi tem uma linha poética boa e canta de uma forma suave. Já o Baiana System é uma mistura de tudo, pena que o som seja muito segmentado, direcionado para uma galera mais alternativa", pontuou.       

   Com tantos anos dedicados à música baiana, Ademar afirma que falta reconhecimento ao seu trabalho e ao de tantos outros artistas que ajudaram a criar a Axé Music. Mesmo ainda na ativa com a 'Furta Cor', reconhece que a situação hoje não é das melhores. “Nós nos tornamos pedintes da música. Precisamos mendigar para tocar no Carnaval”, desabafa.