Cultura

NO MEU TEMPO DE MENINO, em Serrinha, Tarzan matava leão na mão-grande

Um tempo em que tudo era fechado aos domingos e só era permitido ir a missa, aos cultos dos crentes, aos babas e aos cinemas
Tasso Franco , da redação em Salvador | 17/10/2016 às 19:11
Ipiranga Esporte Clube idos dos anos 1950 com "Bocage" de masconte
Foto: Arquivo do autor
​   No meu tempo de menino, em Serrinha, lá pelos idos dos anos 1940/1950, se o sábado era o dia mais alegre da cidade, o domingo era o mais triste. Diz-se que Deus quando fez a terra trabalhou arduamente durante 6 dias e no 7º descansou. 

   Serrinha seguia essa máxima da Igreja Católica e o domingo era o dia reservado ao descanso. O comércio não funcionava, não havia opções de lazer salvo o futebol quando tinha campeonato, e os religiosos católicos participavam da missa na Igreja Matriz de Sant'Anna e os crentes (ninguém falava a palavra evangélico), iam para as duas igrejas batistas que existiam na cidade, uma no Largo da Matança e a outra na Rua da Estação. Os cultos tanto o católico; quanto o evangélico eram realizados nas manhãs do domingo.

   Meu pai era espírita, fundador do Centro Deus Cristo e Caridade, que não abria aos domingos e era perto de nossa casa, fundado em 1946, quando eu tinha 1 ano de idade, mas, quando eu jé era menino grande meu pai passou a ser espírita literário (de ler as obras de Alan Kardeck e outros) e não frequentava o Centro; e minha mãe era católica não praticante. Fazia suas orações em casa, mas, não ia a missa com frequência, como acontecia com suas parentes, Zulmira Paes e Pipe Paes, estas, sim, católicas integrais, fervorosas.

    Daí que eu não tinha religião e não frequentava nem a missa; nem a igreja dos crentes; nem o centro espírita. Eu fica admirado com os crentes que moravam no bairro das Abóboras e passavam lá por casa, domingo pela manhã, os homens vestidos de paletó e gravata e as mulheres de vestidos longos portando grossas bíblias. Pareciam gente do outro mundo.

   Agora, pra nós, meninos, o domingo era um dia legal, primeiro porque tinha os babas e jogos de futebol, sempre pela manhã; e a tarde tinha a matinée no cinema a partir das 15h, quase sempre com a exibição de uma comédia ou filme de cowboy e os seriados, de  Zorro e Tarzan, os que a gente mais gostava.

   A cultura francesa era forte na cidade e escrevia-se matinée em francês. Curioso é que matinée significa manhã, mas, para nós e para o cinema era tarde que, em francês é après-midi. As sessões do cinema às noites eram chamadas de soirée (pronuncia-se suarê) que significa reunião noturna em francês.

   Eu morava no Largo da Usina (Praça Miguel Carneiro) e tinha um campo de futebol na minha porta. Domingo pela manhã, 8h, já estava correndo no baba com Dinho de Mané Beiju, Toinho, Miro, Farias, Boi, Dem, Nilson de Zé Faustino, Berlmiro perna torta, Tonho Avelino, Ivan Barbosa, Zé Emanuel, os meninos lá da praça e das ruas adjacentes.

   Quando a gente tinha 9 a 10 anos de idade, Sêo Paulino Santana, dono da farmácia, fotógrafo e pai dos ex-prefeitos Popó e Mariano Santana, mais conhecido por Biêta, apaixonado por futebol, criou uma liga com torneio só de times infantis, o Ipiranga e o Bahia, todo mundo uniformizado, com calcão e camisa, mas, sem chuteira. 

   Pense numa coisa fantástica. Foi isso. No dia da estreia do time, eu jogava no Ipiranga, quase não dormi no sábado para o domingo esperando que o dia logo amanhecesse. O campo era uma lixa, atrás do Cemitério do Padre, mas, a gente pouco se importava em arrancar uma ponta do dedo.

   O Ipiranga (vide foto) era formado por Isaac, Ferreirinha, Farias, eu (Tasso), Miro e Gatão; Haróvel, Pavão, Toinho, Dinho e Manezinho. Na foto estão Bocage, o mascote, e Ana Santana (patroness). 

   Outro dia, no Grupo Encontro dos Amigos de Serrinha, Nelsival colocou uma foto do Bahia, mas, não me lembro da escalação total. Tinha Nelsinho do Lamarão, Nelsinho Pato Preto, Nego Zé, Cláudio Clímaco, Bulcão, uma galera tope de nossa idade turma que está, hoje, na faixa dos 70 anos.

   As partidas eram disputadíssimas sem técnica alguma na base da correria. Sêo Paulino ficava numa euforia fora de série. Para ele, era a glória vê aquela turma de garotos, uniformizados, jogando. Para nós, também um orgulho imenso. 

    Assim que os jogos terminavam a gente corria para casa, tomava banho e se preparava para ir ao cinema. Eu vendida e trocava gibis (revistas em quadrinhos) e levava umas 20 a 30 acima do braço para a porta do cinema tentando fazer negócios. 

   Antes, claro, comprava logo meu ingresso para garantir a entrada no cinema. As revistas mais valorizadas eram as de faroeste (cowboy) Tom Mix, Roy Rogeres, Durango Kid e Cavaleiro Negro; as do Fantasma, Zorro e Tarzan. 

   Quando começou a ser vendida na Bahia a série de Flash Gordon, iniciada nos EUA, em 1936, esta era a mais cara, mais valorizada. A gente fazia qualquer negócio: 3 revistas por 1; vendia-se fiado, trocava-se em figurinhas e também recebia em capilé.

   A matinée era uma espetáculo imperdível, primeiro no cinema da Praça Luis Nogueira, depois no Marajó de Sêo Esdras Maciel, Zé Nunes e Alfredo Ramos. Tinha sempre um filme de cowboy ou de aventuras (Fantasma, etc) e depois o seriado, que era o mais importante, porque a cada semana tinha uma cena em alto grau de perigo para ser desvendada no domingo seguinte.

    Se Tarzan iria iniciar uma luta contra um leão, no momento em que o leão voava em direção de Tarzan, era o The End (fim) e o aviso: na próxima semana.

    Isso era motivo de intermináveis discussões durante a semana nas escolas. Eu já ia para a Escola Agripino Barbosa, onde estudava, alí atrás do Semes de ZéValdo, com várias respostas na cabeça porque sabia que meus colegas iriam fazer várias perguntas.

   A professora era a irmã do prefeito Horiosvaldo Bispo, Lourinho, Edna Santos e ela avisava logo: - Deixa pra conversar sobre a matinée do cinema na hora do recreio.

   Teve uma cena, no seriado do Zorro em que bandidos (quase sempre mexicanos) atacaram uma carruagem com uma bela mocinha na boleia, a qual levava consigo um bauzinho de jóias e dólares. 

   Em determinado momento, o colcheiro já morto a tiros e a carreuagem desgovernada, aparece o Zorro e persegue os bandidos, mata uns dois, outros fogem e ele segue visando parar os cavalos da carruagem desgovernada. Era nesse momento, a carruagem se aproximando de um despenhadeiro, que dava o The End.

   - E agora, assegurava um dos meus colegas no recreiro da Agripino, o Zorro vai usar seu chicote e lançar na roda da carruagem parando-a na beira do precipício.

   - O Zorro vai pular no lombos dos cavalos e parar a carruagem, confessava outro.

   - A carruagem vair cai no precipício, mas o Zorro vai salvar os cavalos e a mocinha, narrava um terceiro.

    Era uma discussão interminável cada um dando sua opinião. 

    Seriado de Tarzan era discussão para uma semana. Se Tarzan caísse num rio correndo da perseguição de alguns nativos com suas flechas e fosse atacado por crocodilos no meio do rio, o debate era fervoroso.

    - Tarzan vai se salvar porque nada mais rápido do que qualquer crocodilo - dizia um colega.

    - Você já viu gente nadar mais rápido do que um crocodilo. Isso é coisa de cinema, Tarzan vai é ser engolido por um crocodilo, comentava outro.

    - Tarzan vai usar sua faca e matar o crocodilo saindo vivo da boca do bicho, assegurava um terceiro.

   Era cada resposta admirável. A gente ficava minutos nessas discussões lembrando que, nenhum de nós conhecia um crocodilo ou um leão, e ninguém sabia nadar porque Serrinha não tinha rio, nem mar, nem lagoa, e o Clube Social aberto em 1952 não tinha piscina. 

    Nenhuma casa tinha piscina. A maioria de nós aprendeu a nadar na Bomba, na Primeira Aguada ou no açude Gravatá.

    Mas, tinha garoto que se ousava a dizer que nadava igual da Tarzan o que era uma gargalhada geral. Era igual ao cinema porque, quando a discussão estava no auge, a professora tocava uma sineta e o recreio terminava.

    Todas as pessoas de minha geração tem lambranças enormes das matinées. Foram nessas sessões de cinema que, já meninos grandes, rapazes, começamos a namorar no escurinho do cinema, de mãos dadas e com aquele frio na barriga. 

    Mas, essa é outra história que escapa da série sobre o meu tempo de menino.