PLANETA TERRA ONDE A ÁGUA É SOBERANA, por ZÉDEJESUSBARRÊTO

ZedeJesusBarrêto
27/12/2021 às 18:28
   A maior de minhas enchentes foi a do São Francisco, em 79, Xique-xique sob as águas, só metade da torre da igreja de fora. Navegamos de canoa sobre os telhados das casa, helicópteros das forças armadas buscavam salvar gente e bichos ilhados, mais da metade dos moradores em acampamentos precários armados na beira da estrada, área do aeroporto, campos de futebol mais distantes. Surubins graúdos apanhados a mão, muriçocas gigantes, aquela água barrenta passando lenta mas indomável, levando galhos, bicho, gente, pertences, ocupando todos os espaços... Um espetáculo assustador e belo. Eu repórter, ao lado de Luciano Andrade, fotógrafo.

 Antes da barragem de Pedra do Cavalo ví uma enchente do Paraguaçu que, acreditem, as águas lambiam os dormentes da Ponte Dom Pedro II, Cachoeira e São Félix afogadas. Nessa época, ouvi dos mais velhos que o rio roncava, lá pras bandas da nascente, sinalizando quando vinha enchente, e os negros e caboclos de ouvidos mais acesos escutavam e davam o alerta para que as pessoas que viviam nas proximidades, nas áreas mais baixas procurassem abrigo. Às vezes dava tempo de salvar alguns móveis, roupas, utensílios das velhas igrejas, comércio, sobrados... Um Paraguaçu pujante e medonho enchendo o caldeirão Kirimurê.

 No começou dos anos/década de 60 teve uma enchente no Subaé que Santo Amaro ficou com água no pescoço. Não sei se Caetano se recorda, se dona Canô tinha lembrança.

 Certa feita eu vi aquele rio que passa rasteirinho entre as pedras na cidade de Lençóis, juro, batendo naquele pontilhão alto que fica quase defronte ao Mercado, no centro. Fúria de águas escuras, um barulho ensurdecedor. ‘Meu Deus, será que ainda sobe mais?’ , ninguém tirava os olhos.  É um risco a pessoa estar numa trilha, pelas nascentes de um rio na Chapada e começar a chover forte, o rio enche de repente, lavando, encobrindo as pedras, sem dar tempo e ter muito pra onde correr... 

  Lembrei-me de um rio que me atormentou a infância, cada ida de trem para casa de vó Barreta, em Sergipe. O trem passava devagarinho e com cuidado sobre o rio Itapicuru, lá em baixo, sempre à noite, luzes apagadas, os passageiros quietos, em silêncio, beatos e beatas balbuciando ave-marias e dedilhando o terço de Nossa Senhora, pedindo proteção pra velha ponte não ruir. Numa dessas, o comboio parou antes de encarar a travessia e o chefe-do-trem passou avisando que o rio estava muito cheio e havia perigo. Choro, reza e ranger de dentes de velhos, jovens e crianças quando o trem seguiu, resfolegando lento - deu tempo pra rezar um rosário inteiro -, todos quietos, sem mexer a bunda, a ponte velha balançando feito galho de pindoba. Eu quase entreguei minh’alma menina de volta ao Criador.

 Já bem adulto, passei por ele, o tal fantasma Itapicuru, numa viagem pras bandas do Jorro. Parei, fui cumprimenta-lo, aquela tripinha d’água sem graça, esquálida, escorrendo mansa... Mesmo assim, pedi agô, molhei a testa, me benzi ...     

Soberanas águas, todo o respeito.