NO MEU TEMPO DE MENINO a gente só saberia das coisas depois de grande

Tasso Franco
26/10/2017 às 08:35
   As crianças dos dias atuais são mais bem informadas do que aqueles do meu tempo de menino, anos 1940/1950, em Serrinha, pequena cidade do interior da Bahia, sem água encanada e sem energia elétrica. Ainda assim, tínhamos um dos primeiros meios da aldeia global, um sistema de transporte por trem na linha férrea que ligava Salvador a Juazeiro desde o final do século XIX. 

   Esse fator não impactava em nossas vidas no plano da informação genérica, do dia-a-dia, embora tenha trazido à nossa cidade - a medicina, a engenharia, a organização operária e sindical, a hotelaria de melhor padrão, o telégrafo, etc - e encurtou a distância para a capital, antes viagem que se fazia em uma semana montando em burros via Catu e/ou via o Recôncavo tomando-se o vapor de Cachoeira pelo Iguape até a capital, para 6 horas.

   Nós, as crianças daquele tempo, éramos mal informadas de quase tudo e os veiculos mais importantes da cidade eram os serviços de alto-falantes e os sinos da matriz que marcavam as horas, anunciavam as missas e tocavam melancolicamente quando alguém morria. 

   Sino batendo devagar, compaassado feito jegue aguadeiro, era aviso de morte de algum cristão. O jornal A Tarde que chegava pelo trem era lido por poucas pessoas e o semanário editado por meu pai, Bráulio Franco, "O Serrinhense", trazia as noticias locais e nós, as crianças, os ignorávamos. 

   Qualquer dúvida ou questões mais pertinentes às nossas vidas as familias tinham sempre uma clássica resposta a nos dar: "Quando vocês crescerem vão ficar sabendo". 

   A gente se virava como podia. O ensino na escola primária limitava-se a noções gerais sobre português, matemática (na época chamada de aritimética), geografia e história. Educação sexual, zero. Educação musical só na Sociedade Filarmônica 30 de Junho. Educação para o trabalho, zero. Pedagogia social, dois.

   Uma das coisas que a gente ficava mais encucado era sobre o nascimento das pessoas. A morte era mais entendível. Uma pessoa ficava velha, tinha uma doença, uma febre alta, morria e era levada para o cemitério do padre. Agora, o nascimento era complicado. Algumas familias diziam que "era papai do céu que trazia os bebês"; outras afirmavam que "era a cegonha". 

   Eu mesmo não me lembro o que me disseram. Agora, em Serrinha, não havia cegonhas. A maior ave que conhecíamos capaz, digamos assim, de trazer em seu bico um bebê enrolado numa fralda, era o urubu. Outra, seria o gavião, assim mesmo, dado seu porte, um bebezinho bem pequeno. As demais aves eram os pássaros: cardeal, coleiro, sabiá, anum, rola, pega, etc, e, em nossa casa, meu pai tinha um bocado delas em gaiolas.

   Uma criança saber que havia um parto e o bebê saia da barriga das mamães pela vagina, isso a gente não tinha a menor idéia. Em Serrinha, naquela época, todos os partos eram feitos por parteiras em movimentos naturais (salvo rarissimas exceções, pois, a cidade só tinha 1 médico). Cesarianas nem pensar. A parteira tinha que dar um jeito, fazer manobras, artes, usar unguentos, e muitas mamães morriam.

   Eu tinha 5 anos quando minha mãe estava grávida, de barrigão. Ninguém sabia se o novo bebê seria homem ou mulher. Não existia esse tipo de exame, a ultrassonografia. Meus pais já tinham dois homens e uma mulher. E, torciam por outra mulher para fazer dois casais. O ideal. E, de fato, nasceu uma menina. 
  
   Meu pai colocou o nome de Laiz. No dia do seu nascimento lá no casarão  - todos os meus irmãos e irmãs nasceram pelas mãos da parteira Dona Rosa, no chalé da Praça Miguel Carneiro - as crianças eram isoladas para não ficarem sabendo de nada. A gente ficava curioso e desinformado. De vez quando alguém dizia: - Tá perto de nascer. Só ouvíamos os gemidos da mamãe. 

   Quando nasceu Laiz, meu pai era fumante, saiu para a varanda pra pitar um fumo Astoria e, provavelmente, soltar a cegonha. Disse em voz alta: - Nasceu é uma menina, sãzinha. Viva. 

   E a cegonha? E o urubu? E o gavião? Nada. Não havia bicho nenhum por perto e nossa curiosidade só fez aumentar. Eu mesmo só vim ter idéia do corpo humano quando entrei no ginásio e tive aulas de ciência com a professora Evoá Ferreira. Havia uns protótipos de homem e mulher, em gesso, no ginásio e ela foi mostrando: - Isso aqui é o figado, isso aqui é o coração, isso é o útero onde ficam os bebês que vão nascer.

   Alguém então perguntou a meu pai como foi o nascimento de Laiz e ele respondeu com a clássica frase: "Quando vocês crescerem vão ficar sabendo".

   Certa feita, primórdios dos anos 1950, deu-se uma nova onda pós alarme de Orson Wells, de 1938, quando dramatizou a queda de um meteoro na Rede CBS, dando conta de que o mundo iria se acabar. Fiquei sabendo dessa novidade no baba do Largo da Usina e, claro, eu e meus colegas, ficamos apreensivos. Uma enorme bola de fogo iria arrasar com tudo. Só as baratas sobrariam.

   A gente não tinha a menor idéia do que fosse o mundo, se seria só a terra com suas águas, ou se também incluiria as estrelas, a lua, o sol e marte. Só conheciamos esses astros. Marte era o mais enigmático e também o mais comentado entre nós porque lá moravam os marcianos, um povo feio, pequeno e orelhudo.

  Os homens pareciam que não tinham 'perus', eram lisos nas partes de baixo - asssim eram os desenhos que víamos e eles, eram mais inteligentes do que nós porque usavam disco voadores e visitavam a Terra com frequência, enquanto os brasis mal voavam para o Rio de Janeiro em aviões bimotores zuadentos.

   As estrelas a gente adorava mais do que a lua e não as contavam porque era pecado e também poderia nascer verrugas em nossos narizes. O sol a gente detestava porque Serrinha era seca e quente. E a lua, esta sim, era habitada por São Jorge.

   Quando acordei no tal dia que o mundo iria se acabar dirigi-me para a escada do fundo do chalé que dava para o quintal e abri o berreiro em choro convulso. Minha mãe quando viu aquela cena correu em minha direção e falou: 

   - Qué que você tem menino? Tá chorando por que?

   - É que o mundo que vai se acabar mãe e todos nós vamos morrer?

   - Deixe de choro e bobagem. O mundo não vai se acabar coisa alguma. Vnha tomar café para ir à escola - ralhou-me. 

   Sem alternativas, enxugando as lágrimas na ponta da camisa, fui tomar café olhando para as telhas do casarão onde morávamos esperando a bola de fogo que acabaria o mundo. Nada aconteceu e fui para a escola. Ainda perguntei a minha mãe: - Por que o mundo não se acabou?

   - Pergunte ao seu pai que é um homem lido e ele vai lhe explicar.

   Quando retornei da escola, no almço, perguntei a meu pai por que a bola de fogo não acabou o mundo. 
Ele olhou pra mim com a cara lisonjeira e respondeu: - Você ainda é muito pequeno para entender isso. Quando você crescer ficará sabendo.

   Tenho a impressão que essa frase não foi só ouvida por mim e sim por todos os meus colegas e amigos. 
A gente não sabia de nada. Quando a locomotiva 500 explodiu na Estação do Trem foi o maior acontecimento da cidade, em anos. Um fato super-extraordinário. Mas ninguém conseguiu explicar para nós, as crianças, por que a máquina explodiu. 

   A resposta mais simples era: - Esquentou e explodiu.

   E mais uma vez, usou-se à mancheia a expressão classica: - Quando vocês crescerem vão ficar sabendo.

   Hoje, não é mais assim. Algumas crianças sabem determinados assuntos mais do que os pais. 
O mundo estava virado. Eu, que já estou velho, aprendi muitas das questões que me afligiam com o tempo, mas, ainda assim não sei nem a missa metade deste meu mundo. (TF)