SUCESSO DA FURTA COR veio com a Ave Maria de Gounod

Mauricio Matos
18/01/2017 às 22:14

O sucesso da banda Furta Cor aconteceu rápido, logo no primeiro Carnaval que participou, e o talento de Ademar Andrade viria a ser reconhecido, em nível nacional, de uma forma bastante inusitada. Um incidente com o trio elétrico dos Novos Baianos, na praça Castro Alves, na madrugada da Quarta-feira de Cinzas de 1984, mudaria para sempre a história de Ademar, da banda Furta Cor e da música baiana.

“Encontramos o trio dos Novos Baianos, atravessado na praça Castro Alves, fazendo uma apresentação para uma emissora de televisão e obstruindo nosso caminho. Aguardei uns 20 minutos e pedi passagem, porque precisávamos recolher o bloco Papa-Léguas. Só que eles iniciaram uma outra música e não me deram ouvidos. Eu pedi passagem, pelo menos, mais umas três vezes, até que Baby Consuelo perguntou no microfone se tinha um radinho de pilha querendo passar por eles”. 

Chamar o som do trio do Papa-Léguas de “radinho de pilha” foi a gota d’água para Ademar que, já sem paciência, pediu ao técnico de som, Frank Pitú, que “abrisse o gás” no volume do trio. “Naquela hora, eu só lembrei de minha mãe, Odília Andrade, que todos os dias, às 18 horas, ouvia a Ave Maria na Rádio Sociedade da Bahia, e, meio que em transe, enfiei a mão nos teclados e comecei a tocar a Ave Maria de Gounod”. 
  
Segundo Ademar, parecia que ele estava em outro planeta. “Só existia eu e a música. Era como se o mundo tivesse parado. Lembro que toquei com os olhos fechados e com o coração na boca, até a última nota”. Ele não tinha noção, mas a banda Furta Cor estava fazendo história naquele dia. Ao final da execução, o trio foi tomado por repórteres de jornais, rádios e televisão, inclusive de emissoras nacionais. Era a mídia se rendendo ao talento do menino da cidade de Nazaré das Farinhas, que veio para Salvador com 2 anos de idade, e estudou na Escola Parque, onde teve o privilégio de ser aluno do maestro Vivaldo Conceição, já falecido. “Um ícone da música baiana, que me ensinou tudo que eu sei”, revela.

Ademar se empolgou tanto com a receptividade dos foliões que emendou a 5ª Sinfonia de Beethoven, Vozes da Primavera (Johann Strauss), Jesus Alegria dos Homens (Haendel), Amar Quem Eu Já Amei (Zé Ramalho), Mensageiro da Alegria (Gerônimo) e Cometa Mambembe (Carlos Pitta/Edmundo Carôso). “O povo enlouqueceu na praça Castro Alves com essa sequência de músicas. Saímos de lá ovacionados e o cantor Zé Honório consagrado”, lembra o músico. 

A Ave Maria ainda iria render muitos frutos para a banda e para o Carnaval de Salvador. No dia seguinte, o grupo foi capa de todos os jornais locais, destaque nos telejornais da capital baiana e na crônica do então Cardeal Arcebispo e Primaz do Brasil, Dom Avelar Brandão Vilela (1912-1986), que escrevia no jornal A Tarde. 

À noite, o Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão, quebrou uma tradição ao encerrar o programa daquela Quarta-feira de Cinzas ao som da Ave Maria, tocada por Ademar. Vale ressaltar que em todos os outros anos, o jornal terminara com imagens do desfile da escola de samba campeã do Carnaval carioca. 

Ainda segundo Ademar, a Ave Maria também foi responsável por um dos momentos mais emocionantes da história da banda Furta Cor. De acordo com o músico, as aparelhagens de som e de iluminação utilizadas no Carnaval de 1984 foram cedidas pelo dono da empresa de sonorização Propago, João Claudio Oliveira, e seriam pagas com o cachê da festa. “Na ocasião, seu João me disse que a mãe dele, que morava no interior de Pernambuco, havia se emocionado ao ver pela televisão a banda tocar Ave Maria, em pleno Carnaval, e com o equipamento da Propago. Por conta disso, ele nos deu toda a aparelhagem. Foi um presente divino”, conta Ademar.

A ousadia de Ademar em tocar a Ave Maria de Charles Gounod, compositor francês, do século 19, e outros sucessos da música clássica, mudaria de vez a linguagem musical do Carnaval de Salvador. Aquela catarse provocada pela banda Furta Cor, na praça Castro Alves, na madrugada da Quarta-feira de Cinzas, parecia ser um prenúncio da explosão sonora que estava prestes a acontecer, chamada Axé Music, cujo maior expoente da primeira fase foi o cantor e compositor, Luiz Caldas.