As finanças do Vaticano estão organizadas, por Ettore Gotti Tedeschi

Ettore Gotti Tedeschi
21/01/2015 às 20:16
Com todo respeito e devoção, gostaria de fazer uma pergunta à Sua Eminência Reverendíssima Cardeal George Pell, o qual, como prefeito da Secretaria de Economia, está  gerenciando a reforma das finanças da Santa Sé.

Ettore Gotti Tedeschi, ex Presidente do Banco do Vaticano de 2009 a 2012 (AP)

Sua Eminência, tem certeza de ter sido suficientemente informado sobre a história recente do Banco do Vaticano, do qual eu fui presidente entre 2009 e 2012, quando me demitiram?

Em um artigo nesta revista, no mês passado, o Cardeal Pell explicou porque ele acredita que as finanças da Santa Sé estão em bom estado e que agora finalmente tudo está sob controle. Ele também explica, entre outras coisas, que a situação financeira do Vaticano é muito mais saudável do que se imagina, uma vez que reapareceram as centenas de milhões de euros que antes haviam sumido dos balanços oficiais do Vaticano.

O artigo do Cardeal certamente terá tranquilizado os fiéis que fazem sacrifícios consideráveis para manter a Igreja, e também terá dado alívio a muitas organizações religiosas que contam com esses recursos para fazer face às despesas. No entanto, o artigo parece não ter acalmado o porta-voz da Sala de Imprensa do Vaticano, que “corrigiu” o cardeal Pell, ao invés de pedir-lhe diretamente que esclarecesse, explicando que os fundos que foram deixados fora dos balanços oficiais não são fundos “ilegais, ilícitos ou mal administrados”.

O Cardeal citou-me explicitamente no artigo, ressaltando que os últimos anos do Pontificado de Bento XVI foram muito turbulentos para o Instituto para as Obras de Religião (IOR), conhecido popularmente como Banco do Vaticano. “O presidente do banco, Ettore Gotti Tedeschi, foi destituído pelo Conselho Laico”, escreveu Pell, “e uma luta pelo poder no Vaticano levou ao vazamento de informações”. Esta declaração deixa a entender que foi o Conselho Laico que pediu a minha cabeça e que até eu estaria envolvido nessa “luta pelo poder”. Se isso fosse mesmo verdade, por que então não foi convocado imediatamente uma comissão de inquérito?

Por isso, gostaria de sugerir algumas reflexões que espero que sejam úteis para o Cardeal, bem como para toda a Igreja, muito embora a cada dia que passa, mais tenho a impressão de que estão fazendo de tudo para que se esqueça esses fatos “ocorridos”, mas que para mim são parte importante da minha vida. Uma vida que foi tragicamente mudada por esses mesmos fatos. Eu mantive o silêncio por dois anos e meio desde a minha remoção, mas creio que agora é chegada a hora de colocar algumas coisas (só algumas) em claro.

O Cardeal Pell tem toda a razão ao dizer que a Santa Sé tem como principal desejo respeitar os padrões internacionais de transparência financeira. E isto é exatamente o que Bento XVI tinha decidido fazer quando lançou a grande reforma das finanças do Vaticano.

Estes novos padrões são tão importantes que eu mesmo os estabeleci em um documento intitulado “Os Pactos Lateranenses do século XXI”. Eles visavam fazer com que a Santa Sé se enquadrasse num contexto de transparência de acordo com as normas financeiras internacionais, as quais nenhuma organização pode mais ignorar, principalmente depois dos acontecimentos de 11 de Setembro de 2001, nem mesmo citando razões de alegada confidencialidade ou “sigilo”.

Foi o próprio Bento XVI que me pediu para que atingisse essa meta de modo “exemplar”, a fim de assegurar a credibilidade da Igreja como autoridade moral universal. Por isso, procedemos com este processo, juntamente com o Cardeal Attilio Nicora, presidente da Administração do Patrimônio da Sé Apostólica e com os maiores especialistas tanto internos como externos ao Vaticano.

O Cardeal Pell em seu artigo mencionou o famoso sequestro dos 23 milhões de euros do Banco do Vaticano feito pelo Banco da Itália. Ele disse que o dinheiro foi congelado porque “as autoridades que supervisionaram o Banco do Vaticano não agiram de modo suficientemente rápido” na aplicação das leis internacionais contra a lavagem de dinheiro.

O sequestro dos fundos ocorreu quando eu mal acabava de ser nomeado Presidente do Banco do Vaticano e tão logo eu havia começado a implementar as reformas ordenadas pelo Papa Bento XVI. Antes da minha nomeação, o nível de transparência do banco era considerado por todos como insuficiente.

O sequestro dos  23 milhões de euros e a sucessiva investigação posterior por parte do Ministério Público de Roma foram resultado da falta de uma lei contra lavagem de dinheiro, falta de procedimentos adequados e de uma autoridade dedicada que supervisionasse todas as questões ligadas à transparência financeira. Estas garantias são exigidas de todos os bancos que operam nos países que querem ser incluídos na chamada “lista branca” – ou seja, os países comprometidos a combater o terrorismo e lavagem de dinheiro sujo.

Com a aprovação explícita do Secretário de Estado e Presidente da Comissão de Cardeais, o Cardeal Bertone, decidiram que eu, juntamente com o Diretor do Instituto, fôssemos interrogados pelo Ministério Público de Roma. Era uma coisa incomum para um funcionário do Vaticano, mas estávamos determinados a mostrar que a partir daquele momento não queríamos ter nada a esconder e que não queríamos esconder nada. Papa Bento XVI havia pedido uma transparência total.

O dinheiro sequestrado foi então colocado à disposição do Instituto – contanto que se providenciasse para que as regras relativas à transferência de fundos fossem obedecidas — graças à competência e credibilidade de minha advogada, Professora Paola Severino, que mais tarde tornou-se ministra da Justiça. Ela foi capaz de convencer o Ministério Público a respeito da determinação da Santa Sé em atingir as três metas tangíveis até ao final de 2010: a aprovação de uma lei contra a lavagem de dinheiro, a introdução de procedimentos internos no Banco do Vaticano (e das outras instituições interessadas da Santa Sé) e a criação de um órgão de supervisão geral, a Autoridade de Informação Financeira Vaticana (AIF). Em 31 de dezembro de 2010, Bento XVI assinou o Motu Proprio com o qual ratificou a lei contra lavagem de dinheiro, constituiu a Autoridade de Informação Financeira Vaticana e nomeou o Cardeal Nicora como seu Presidente.

O Cardeal Pell não pode imaginar quanto esforço, quantos conflitos e com quantas dificuldades nos deparamos quando em 2011 começamos a implementar a lei contra lavagem de dinheiro e a AIF começou a operar. Esses esforços foram reconhecidos quando os curadores da MONEYVAL, o órgão de monitoração do Conselho da Europa, fez a primeira visita de avaliação em novembro de 2011 e os resultados foram muito positivos. Os próprios encarregados da MONEYVAL expressaram surpresa com o nosso empenho e a nossa eficiência.

Eu suspeito que o cardeal Pell também não tenha conhecimento do que aconteceu imediatamente depois. Em dezembro de 2011, logo após a visita bem sucedida da Moneyval, foi feito com uma pressa surpreendente o esboço de uma nova lei que iria modificar tanto a lei contra lavagem de dinheiro como o papel da AIF.

Eu fui informado dessas alterações apenas em janeiro de 2012 pelo presidente da AIF, e mesmo assim só depois que o esboço da lei tinha sido feito. Em suma, o ponto chave dessas mudanças, além de alguns itens modificados, foi que AIF deixou de ser um órgão independente para terminar sob a supervisão da Secretaria de Estado, confundindo assim o papel do controlado com o do controlador. Isso colocou tanto o cardeal Nicora, como eu e todo o Conselho da AIF numa situação muito difícil. O Presidente da AIF, então, escreveu um memorando manifestando discordância e desconcerto ao Cardeal Bertone, memorando esse que depois acabou misteriosamente sendo publicado por um dos principais jornais italianos.

O sistema bancário internacional ficou muito intrigado com a repentina aplicação da nova lei que impedia a troca necessária de informações e a considerou como uma mudança de rota no que diz respeito ao caminho de transparência previamente combinado e aos resultados tangíveis prometidos. Como resultado, a Moneyval fez uma segunda visita no início de 2012 e expressou fortes dúvidas com relação à situação — especialmente com relação à perda de independência da AIF.

MONEYVAL então escreveu um segundo pré-relatório, de 27 de abril de 2012, em que destacava que de fato tinha sido feito um “passo atrás”. Será que o Cardeal Pell foi devidamente informado desses eventos? Como resultado na mudança da lei, o sistema bancário internacional foi obrigado a interromper todas suas transações com o Banco do Vaticano. Dois dos principais bancos italianos fizeram com que chegasse diretamente às minhas mãos e por escrito as suas preocupações. O Cardeal Pell, por acaso, teve acesso a essas explicações documentadas? Ou, se já tiver sido informado, considera que estas informações são irrelevantes?

Quando então o Presidente da AIF pediu ao Secretário de Estado para que suspendesse a ratificação das alterações, que eram consideradas pela AIF como lesivas e arriscadas, foi feito exatamente o contrário: tais mudanças foram imediatamente ratificadas pela Secretaria de Estado, quase um mês antes do prazo de expiração formal que era de três meses. Não é curiosa essa velocidade?

Gostaria ainda de esclarecer, para que seja de utilidade para o Cardeal Pell, a relação que existe entre o Banco do Vaticano e o chamado escândalo Vatileaks, em que o mordomo do Papa, como foi provado, vazou documentos sensíveis fora dos muros do Vaticano. Os jornais italianos publicaram um documento interno do Banco do Vaticano (sobre a relação entre a AIF e IOR) e o referido documento escrito pelo cardeal Nicora endereçado ao Secretário de Estado.

A fim de minar a minha credibilidade, acusaram-me de ser o “corvo” e de ter sido eu a vazar os documentos. Ora, isso obviamente é falso, e por isso eu pedi uma investigação imediata. Nada aconteceu. Posteriormente, foi provado que os documentos tinham sido divulgados pelo mordomo do Papa.

Depois disso, deram nove razões enganosas para minha posterior remoção. Entre elas, fui acusado de não ter cumprido o meu dever, de não ter informado o Conselho do IOR e de ter tido um mau relacionamento com a gerência. Uma das razões se referia também ao vazamento de documentos, embora tenha sido, em seguida, provado que tinha sido responsabilidade de outra pessoa.

O Cardeal Pell, provavelmente, também precisa ser informados sobre o que eu considero como um motivo que pode explicar, em parte, a decisão do Conselho do IOR de me demitir.

Em abril de 2012, a Comissão de Cardeais reconfirmou a minha nomeação, mas no dia 24 de maio, o Conselho me demitiu. Nunca me deram a oportunidade de explicar isso, mas eu acho que a razão para este gesto foi uma decisão minha (informada com antecedência às autoridades competentes) de apresentar ao Conselho uma proposta que teria mudado completamente o governo do Banco. Esta mudança era absolutamente necessária devido aos eventos anteriores.

No entanto, o cardeal Pell pode não saber que a Comissão de Cardeais não ratificou o voto de censura contra mim por parte do Conselho do IOR. Alguns cardeais, de fato, apoiavam-me nos meus esforços e pelo meu profissionalismo e recusaram-se a aprovar uma decisão desse tipo.

Talvez nem mesmo se sabe que jamais tive permissão para responder pessoalmente às nove razões do voto de desconfiança, apesar dos inúmeros pedidos da minha parte e não obstante uma nota escrita de próprio punho a esse respeito e que nunca foi considerada.

O Cardeal Pell é conhecido por sua competência, por sua coragem e por sua honestidade intelectual e moral. Eis porque eu tenho certeza de que ele jamais teve acesso aos documentos e às explicações que são essenciais para compreender os eventos que sucederam antes mesmo que ele fosse nomeado para Roma.

Entre esses documentos, eu sublinho, em particular, três:
• O pré-relatório da MONEYVAL de abril de 2012, comparando-o com o Relatório de 4 de Julho (ver acima);

• Vários relatórios da Deloitte de 2011, relativos aos obstáculos à implementação dos novos procedimentos;

• O relatório sobre as razões de encerramento da conta do JP Morgan (Março de 2012).

Se o cardeal Pell pudesse ler esses documentos, iria entender qual a responsabilidade que pesou sobre os meus ombros durante esse período. Se pudesse ler a minha nota em resposta às nove razões para o voto de desconfiança, poderia compreender a verdadeira natureza do meu sofrimento.Sofrimento que só cresceu nos últimos tempos, devido à indiferença para com a minha súplica pela busca da verdade.
Gostaria de incentivar Sua Eminência a ler a entrevista do secretário do Papa, Arcebispo Georg Gänswein, publicado no  “Il Messaggero” em outubro de 2013, em que ele diz que Bento XVI ficou “muito surpreso” com o voto de desconfiança, e que mantinha em “alta estima” a minha pessoa. Deveria também tomar conhecimento do que o Secretário de Estado me transmitiu pessoalmente da parte de Bento XVI, no dia 07 de fevereiro de 2013: o Papa havia decidido imediatamente me reabilitar — uma decisão que jamais foi implementada após a renúncia de Bento XVI. Queria que Sua Eminência soubesse também o quanto eu sinto falta do Papa Bento XVI…

Por fim, acredito que o cardeal Pell deveria desvendar também esses quatro mistérios, embora eu tenha certeza de que é tarde demais, pelo menos para mim:
1) Quem mudou a lei contra lavagem de dinheiro do Vaticano, em Dezembro de 2011, e por quê?

2) Quem realmente decidiu que eu tinha que ser removido pelo Conselho Laico como presidente do Banco do Vaticano no dia 24 de maio de 2012, e por quê?

3) Quem foi que desobedeceu Bento XVI, o qual queria a minha reabilitação?

4) Quem decidiu que meus pedidos e súplicas para que eu fosse interrogado sobre os fatos acima deveriam ser ignorados? Quem não quer que venha a público a minha versão da verdade, e por quê?

Ettore Gotti Tedeschi, ex-presidente do Banco do Vaticano 2009-2012